terça-feira, 22 de junho de 2010

Direito e Moral em Miguel Reale

“Não é possível tratar aqui de todas as doutrinas que têm procurado determinar o conteúdo do bem. Alguns autores prendem-se à linha do pensamento clássico, concebendo o bem como felicidade, ou seja, como a realização daquilo que postula a plenitude do ser e, como tal, a harmonia do indivíduo consigo mesmo. De maneira geral, poder-se-ia dizer que, em tal caso, o bem é aquilo a que o homem tende por natureza, graças ao que representa em seu espírito a nota dominante ou o elemento fundamental, que é a razão. Viver segundo a natureza é viver segundo a razão.”

“Outros autores reduzem o bem à noção do útil, ou do economicamente apreciável, ou, então, à satisfação dos valores mais imediatos da existência.”

“Se nos colocarmos no ponto de vista do conteúdo, haverá tantas concepções do bem quantas as expressões axiológicas fundamentais, porquanto o poeta dirá que seu bem consiste na realização dos valores estéticos, enquanto o homem de negócios traduzirá seu ideal em algo de mensurável e vital.”

“Superando, no entanto, as divergências particulares de conteúdo, fica sempre de pé a noção de que bem é aquilo a que todo homem tende, de conformidade com as suas inclinações naturais, desde que a forma de agir de cada um seja condição do agir dos demais numa unidade concreta e dinâmica entre as partes e o todo.”

“Não basta que, ao procurar o bem que nos atrai, não causemos dano a outrem, consoante concepção individualista e cômoda que consagra o isolamento ou a autonomia de cada homem como centro de uma trajetória social indiferente à sorte dos demais. Já o dissemos e vale a pena repetir: o homem deve ser apreciado segundo o prisma do indivíduo, e segundo o prisma da sociedade em que ele existe. São duas formas ou maneiras fundamentais de apreciar-se o problema do bem, marcando, efetivamente, dois momentos de um único processo, visto como a colocação de um envolve, necessariamente, a colocação do outro. É nesse sentido que podemos distinguir, mas não separar, o estudo do bem em duas grandes órbitas: a do bem enquanto individual e a do bem enquanto social. A Moral estuda o bem enquanto individual, ou seja, polarizando tudo em relação ao problema do indivíduo, enquanto que o Direito põe a tônica, o acento caracterizador, sobre aquilo que é social.”

“Advertimos logo que nem o Direito descuida daquilo que é próprio do indivíduo, nem tampouco a Moral é cega no que tange ou cabe ao todo. Sabemos que existe a Moral Social, que cuida dos deveres do indivíduo enquanto indivíduo para com o todo. Por outro lado, o jurista não descuida do problema do indivíduo, nem muito menos ignora a importância decisiva que o elemento intencional e subjetivo representa na experiência do Direito.”

“Poder-se-ia dizer que a Moral cuida, de maneira direta, imediata e prevalecente, do bem enquanto individual, e que o Direito se preocupa de maneira direta, imediata e prevalecente, do bem enquanto do todo coletivo, isto é, do bem comum ou justiça.”

Para Miguel Reale, a categorização dos conceitos parte do gênero Ética que contém em si a Moral e o Direito, dividindo a Moral entre Moral individual e Moral social. Optamos por categorizar o conceito de Justiça como gênero, de onde surgem as espécies Direito e Moral, dividindo a Moral entre Ética e Moral individual.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Princípios constitucionais de Direito Agrário

Augusto Burnier


Introdução:

Definida a questão agrária, investigo os princípios que operam na atual Constituição.

Princípios constitucionais:

A Constituição Federal vigente como constituição-programa representou um amadurecimento da legislação nacional face aos direitos fundamentais e recebeu o epíteto de Constituição Cidadã quando de sua promulgação. Não há dúvida ser a Constituição Federal a principal fonte do direito agrário brasileiro. Dela se extrai o objeto, os princípios e os principais institutos da disciplina.

Não se confunda os princípios constitucionais de Direito agrário com o conteúdo normativo da questão agrária. Enquanto este se restringe fundamentalmente de modo a alargar sua abrangência, aqueles se alargam para poderem restringir seu objeto, por isso que “os princípios de Direito agrário podem ser encontrados não somente do Capítulo III, [...] da Constituição Federal vigente, mas sim, e isto decorre da complexidade da matéria agrária, espalhados no texto constitucional”.

Da leitura do texto constitucional resta evidente a garantia à inviolabilidade do direito à propriedade e do próprio direito de propriedade atendida a função social. Ademais, tanto a propriedade quanto a função social são princípios da ordem econômica. Isso significa que o regime econômico adotado pelo país é o capitalista, mas que o Estado não adota a posição não-intervencionista característica dos Estados liberais. Para o Direito agrário isso é de suma importância, pois é a intervenção estatal que possibilita a política de reforma, visto ser o Estado detentor do monopólio sobre o uso da força.

Marques identifica como princípios de direito agrário:

1.º) o monopólio legislativo da União (art. 22, I, CF); 2.º) a utilização da terra se sobrepõe à titulação dominial; 3.º) a propriedade da terra é garantida, mas condicionada ao cumprimento da função social; 4.º) o Direito Agrário é dicotômico: compreende política de reforma (Reforma Agrária) e política de desenvolvimento (Política Agrícola); 5.º) as normas jurídicas primam pela prevalência do interesse público sobre o individual; 6.º) a reformulação da estrutura fundiária é uma necessidade constante; 7.º) o fortalecimento do espírito comunitário, através de cooperativas e associações; 8.º) o combate ao latifúndio, ao minifúndio, ao êxodo rural, à exploração predatória e aos mercenários da terra; 9.º) a privatização dos imóveis rurais públicos; 10.º) a proteção à propriedade familiar, à pequena e à média propriedade; 11.º) o fortalecimento da empresa agrária; 12.º) a proteção da propriedade consorcial indígena; 13.º) o dimensionamento eficaz das áreas exploráveis; 14.º) a proteção ao trabalhador rural; e 15.º) a conservação e preservação dos recursos naturais e a proteção do meio-ambiente.

Tais princípios abrangem com eficácia o norteamento do direito agrário, todavia, não são exclusivamente constitucionais. Oliveira identificou e registrou onze princípios constitucionais de Direito agrário, sendo tais os princípios:

a) da função social na propriedade rural:

O princípio constitucional da função social da propriedade rural é, sem oscilação alguma, o vértice do Direito agrário, pois, com a sua expressa inserção reiterada no texto da Constituição Federal, dá-se a flexibilização do direito de propriedade privada, onde o seu reconhecimento em favor do proprietário passa a estar subordinado à satisfação do interesse coletivo na sua boa e útil exploração. [...] A violação dos direitos do trabalhador rural é vista como uma violação da própria função social da propriedade. [...] Em decorrência desse princípio, a proteção possessória só pode ser deferida ao proprietário ou possuidor, este seja autor ou réu, se comprovado o atendimento dos requisitos da função social da propriedade;

b) da preservação do meio ambiente:

A preservação do meio ambiente, embora requisito do próprio cumprimento da função social, erige-se em princípio autônomo, considerando a natureza da atividade agrária, sempre muito impactante, a exigir a efetivação da determinação constante do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama 001/86);

c) da desapropriação para fins de reforma agrária como aspecto positivo da intervenção do Estado:

Como aspecto positivo da intervenção do Estado na propriedade privada, temos como princípio constitucional de Direito agrário a desapropriação para fins de reforma agrária. Nessa hipótese, se o imóvel for improdutivo ou não estiver cumprindo sua função social, ou ainda, mesmo sendo produtivo, não estiver cumprindo os requisitos do art. 186, incs. I a IV, deve ser desapropriado para que se possa condicionar a exploração da terra á satisfação do interesse da coletividade, especialmente por meio de assentamentos de trabalhadores rurais. [...] A desapropriação de imóveis para fins de reforma agrária pode incidir também em casos de imóveis rurais arrendados, pois, se a conduta do arrendatário é infringente dos postulados da função social, o proprietário deve arcar com ônus em função da culpa in eligendo ou in vigilando;

d) da vedação da desapropriação do imóvel rural produtivo e da pequena e da média propriedade rural:

Como aspecto negativo da intervenção do Estado na propriedade privada, temos a conduta de abstenção consubstanciada no princípio da vedação da desapropriação do imóvel rural produtivo e da pequena e da média propriedade rural, extraído do art. 185, incs. I e II, da Constituição Federal. Não obstante, o imóvel produtivo pode ser objeto de desapropriação caso não esteja cumprindo com sua função social, pois da tensão entre o disposto neste artigo em confronto com os arts. 184 e 186, incs I a IV, chega-se a essa interpretação. Por outro lado, a pequena e a média propriedade não podem, em hipótese alguma, ser desapropriadas, desde que seu proprietário não possua outra;

e) da impenhorabilidade da pequena propriedade rural:

O princípio da impenhorabilidade do imóvel rural está previsto de forma específica no art. 5º, XXVI, da Constituição Federal. Deve-se, para a aplicação do referido dispositivo, editar-se lei específica que defina o que vem a ser pequena propriedade rural para esta finalidade. Não obstante, enquanto não for definida a área que não poderá se objeto de penhora, o parâmetro a ser adotado é o do conceito de propriedade familiar previsto no Estatuto da Terra;

f) da privatização das terras públicas:

A privatização das terras públicas é princípio constitucional que deflui do art. 188, §§ 1º e 2º da Constituição Federal, e está a sinalizar que o Pode Público deve concentrar seus esforços na destinação de suas terras devolutas para fins de reforma agrária, pois o custo ao erário, nessas hipóteses, é bem inferior ao da expropriação de terras particulares para a mesma finalidade;

g) da segurança na atividade agrária:

Com especial destaque, surge o princípio da segurança na atividade agrária, extraído do art. 187, incs. I, II, e V, o qual direciona a conduta estatal no sentido de oferecer o mínimo de garantia para o exercício da atividade agrária, sempre sujeita à influência de fatores da natureza que podem eventualmente comprometer o seu resultado e com isso levar à ruína do agropecuarista;

h) do aumento da produtividade:

O aumento da produtividade é princípio constitucional, presente nos incs. III, IV, VI e VII do art. 187, da Constituição Federal, e recomenda a adoção de medidas que resultem em investimentos mais robustos na pesquisa de novas tecnologias para dar solução a problemas da agricultura e pecuária, tais como a incidência de pragas e outros fenômenos naturais que comprometem a qualidade e a quantidade dos produtos;

i) do estímulo ao cooperativismo:

O princípio do estímulo ao cooperativismo agrário está entrelaçado com o do aumento da produtividade, e é decorrente de diversas disposições constantes do texto constitucional (arts. 5º, incs. XVIII, XIX, XX e XXI, 146, inc. III, alínea “c”, 174 e 187, inc. VI) que denotam a preocupação do legislador constituinte em propiciar essa extraordinária forma de organização atividade econômica. [...] O cooperativismo deve ser a estratégia tônica do Poder Público especialmente em projetos de assentamentos, pois resulta em aumento qualitativo e quantitativo da produção agropecuária, bem como na própria eficiência da atividade agrária;

j) da melhoria da qualidade de vida no campo:

O princípio da melhoria da qualidade de vida no campo é presente implicitamente em praticamente todas as regras constitucionais que versam sobre a matéria agrária, mas a que mais denota sua presença é a prevista no art. 187, inc. VIII, onde está antevisto que a habitação para o trabalhador rural deve ser uma preocupação na formulação da política agrícola. Isso é uma das providências cujo escopo é fixar o homem no campo e até mesmo contribuir para o movimento migratório da cidade para o campo, o êxodo urbano;

k) da primazia da atividade agrária frente ao direito de propriedade:

Por fim, o princípio da primazia da atividade agrária em face do direito de propriedade, o qual não é só manifestado na previsão da desapropriação para fins de reforma agrária, mas sim, também pela previsão do usucapião constitucional pro labore no art. 191, caput, da Constituição Federal.

Os preceitos sociais da questão agrária coadunam-se aos princípios constitucionais do direito agrário. Com efeito, os aduzidos princípios integram-se à questão agrária, fazendo parte de seu bojo. Veja-se que a problemática da questão agrária encontra seu desiderato na principiologia aqui apresentada.

Conclusão:

Percebe-se a preocupação do constituinte em buscar a emancipação do campesino e o desenvolvimento agrário. O princípio da função social, que encabeça a luta do Direito agrário, mostra-se completo por contemplar tanto a saúde do imóvel, quanto dos proprietários, vizinhos, trabalhadores, meio ambiente e toda a sociedade. Também, o incentivo ao aumento da produtividade e às práticas cooperativistas, bem como a busca da melhor qualidade de vida no campo, e demais princípios, mostram-se perfeitamente cabíveis à solução da questão agrária, conquanto possibilitem a integralização de indivíduos à estrutura agrária.

Observação: Este texto é o item 3.1. da monografia apresentada como trabalho de conclusão de curso de minha graduação em Direito. A íntegra do trabalho encontra-se nos arquivos da Universidade de Itaúna.

Bibliografia:

MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrário brasileiro. 6. ed. rev. atual. e amp.
OLIVEIRA, Umberto Machado de. Princípios de direito agrário na Constituição vigente.

A questão agrária

Augusto Burnier


Introdução:

A questão agrária é tema de profundidade ímpar por serem os produtos agrários essenciais à condição humana por natureza. O campo é mercado de trabalho primário e básico, nele o ser humano se assenta com naturalidade e desenvolve seu espírito de forma primitiva. Atualmente, o cultivo de alimentos e congêneres encontra-se sofisticado pela tecnologia mecânica e de administração. Todavia, há um hiato entre o espaço agriculturável que alimenta as massas humanas principalmente no que concerne à disponibilidade de terras disponíveis ao assentamento humano. No Brasil, tal hiato é pronunciado por variáveis diversas, o que provoca descontentamento e desigualdade social.

A questão agrária:

Influencia a mentalidade jurídica dos povos a contínua transformação socioeconômica que atravessa o mundo globalizado principalmente com a derrocada dos pensamentos socialistas e liberais, o que se percebe pela contínua evasão do direito civil, nomeadamente com a crescente autonomia do direito agrário, ramo jurídico que ultrapassa a divisão basilar entre Direito público e privado.

A adaptação da vida moderna aos sistemas de produção somada ao comércio globalizado do novo milênio propugna por uma correta avaliação deontológica entre Estado e sociedade. Não se admite a figura do Estado como mantenedor da Economia e agora, tampouco, se o admite totalmente à ilharga desta.

Aos fatos sociais que resultam das relações sociais subsegue-se um processo valorativo que resultará na criação da norma. Assim, tendo-se que as situações de fato são passíveis de mudança através do tempo, a aplicação de normas anacrônicas resultará na aplicação de um processo valorativo em descompasso com a realidade.

O estudo da questão agrária parte de seu pressuposto principiológico para encontrar na Constituição o comando imperativo a conduzir a sociedade na solução de seus problemas agrários.

Define-se como questão agrária a necessidade de se encontrar uma solução estável entre o descompasso jurídico e a realidade fática, entre os deveres do Estado e da sociedade. Delimita-se como agrário, por ora, tudo o que se refere ao campo, à lide do interior, da roça, do mato, da fazenda, da foice e da enxada no eterno labutar do homem com a terra. O agrário da questão agrária não se confunde com o elemento agrariedade. Conforme aduzido adiante, aquele elemento carrega um sentido generalizado frente a este, mais restrito.

O setor agrícola de uma economia em processo de industrialização deve cumprir duas ordens de funções:

a) suprir, na quantidade e nas especificações necessárias, os bens agrícolas de que carece o sistema, consideradas as necessidades do seu comércio exterior;

b) liberar, reter ou mesmo reabsorver mão-de-obra, conforme as circunstâncias, de acordo com as necessidades das próprias atividades agrícolas e as dos demais setores do sistema econômico.

A questão agrária, então, é a problematização do caráter econômico da terra. A terra produtível é objeto de conflito no território nacional por uma falha de sinal entre oferta e demanda tanto dos produtos agrários, quanto da mão-de-obra e da própria terra. Inúmeros são os causadores de falha na comunicação entre a oferta da terra brasileira e a demanda dos trabalhadores, como, por exemplo, os latifúndios e as aquisições para especulação.

“Os problemas próprios ou propriamente agrários da presente crise agrária brasileira são as anomalias concomitantes, verso e reverso da mesma medalha, da superprodução agrícola e da superpopulação rural”. Problemas que, identificados na década de 60, ainda perduram no cenário agrário brasileiro.

Conclusão:

Conclui-se que o mecanismo de produção agrária brasileiro, por razões diversas, encontra-se em descompasso. Dissonância que causa desigualdade social e insatisfação popular, a questão agrária é problema enraizado na sociedade e ajudou a formar a cultura brasileira. A resolução da questão deve atravessar os setores responsáveis, o que solidificará a estrutura produtiva brasileira e a paz social. Não é dever do Estado tomar para si a tarefa de alocar toda a população e gerenciar a movimentação de riqueza, o que seria tarefa de um Estado socialista, mas tão somente corrigir tal falha de sinal.

Observação: Este texto é o item 1. da monografia apresentada como trabalho de conclusão de curso de minha graduação em Direito. A íntegra do trabalho encontra-se nos arquivos da Universidade de Itaúna.

Bibliografia:

COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. 6. ed. reform.
RANGEL, Ignacio. A questão agrária brasileira.

História do Direito Agrário

Augusto Burnier


Introdução:

Tendo como certo o vínculo necessário e inarredável entre o ser humano e a produção agropastoril, investigo, superficialmente, as origens do problema fundiário brasileiro através da análise de documentos jurídicos.

Escorço histórico:

Quando as primeiras sociedades humanas – de caçadores-coletores – descobriram a técnica da agricultura e deixaram seu estilo de vida nômade para fazerem moradia em lugares fixos, intensificaram a produção de alimentos. O aumento na oferta de alimentos encorajou o sistema de trocas existente entre as pessoas, e os pequenos agrupamentos humanos se tornaram tribos e civilizações. “Nessas aldeias, a população cresceu e ampliou-se gradativamente: por exemplo, uma pessoa com habilidade para fazer cerâmica podia trocar seus potes por alimentos e, assim, empregar a maior parte do seu dia produzindo cerâmica”.

Ensina o Professor Benedito Ferreira Marques ser daí a origem do Direito Agrário, citando e exemplificando o Professor Alcir Gursen de Miranda ao escrever que “o Código de Hammurabi, do povo babilônico, pode ser considerado o primeiro Código Agrário da Humanidade”.

Segundo Marques, a história do Direito Agrário no Brasil passa pelo Tratado de Tordesilhas, que dividiu o novo mundo entre Portugal e Espanha. Por esse tratado caberiam a Portugal as terras situadas à direita da linha imaginária que demarcava 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, e à Espanha as terras que ficassem à esquerda dessa linha.

Para colonizar o Brasil, Portugal lançou mão do instituto jurídico das sesmarias, instituído por D. Fernando I, o Formoso, em 1375. As sesmarias foram regulamentadas pelas Ordenações do Reino, notadamente, as Afonsinas de 1446, as Manuelinas de 1512 e as Filipinas de 1603. Todavia, não se deu no Brasil a mesma aplicação do instituto que se dava em Portugal.

No país europeu as sesmarias eram as terras que haviam sido cultivadas, mas que encontrando-se abandonadas, eram dadas a concessionários para que nelas produzisse alimentos. Nas terras recém-descobertas além-mar as terras eram virgens. “No Brasil, no entanto, embora em se tratando de terras sem senhorio, as cartas dadas, ou as dadas de terra, distribuídas para cultura, ou lavoura, passaram a ter igual denominação: sesmaria. Mas, em realidade, importava em começo, na doação de terras devolutas e públicas, com a finalidade exclusiva de serem cultivadas, e cuja venda foi posteriormente autorizada por lei”.

Pelo regime sesmarial, a coroa portuguesa empreendeu nas terras recém-descobertas a colonização através das capitanias hereditárias. Nessa época, prevalecia a concepção do domínio tripartido da propriedade, a Coroa Portuguesa permitia a escravidão e expandia a influência católica em troca do recolhimento do dízimo.

Os concessionários enfrentavam dificuldades para colonizar suas glebas, como para penetrar o interior do continente ou para explorar extensas áreas de terra. As obrigações raramente eram cumpidas, limitando-se o concessionário a pagar os tributos para não cair em comisso. Até finais do século XVI a população brasileira ainda não havia adentrado o interior do continente, vindo a fazê-lo a partir do século seguinte, através da ação de exploradores, bandeirantes, missionários, pecuaristas etc.

O regime sesmarial caracterizava-se pela transferência do domínio útil da terra ao sesmeiro para que a colonizasse, tendo nela sua morada habitual e cultura permanente, demarcando os limites das áreas e pagando os tributos devidos. Sobre as sesmarias Benedito Marques conclui que seu emprego foi ao mesmo tempo maléfico e benéfico. “Maléfico porque, mercê das distorções havidas, gerou vícios no sistema fundiário até os dias de hoje, que reclama reformulação consistente e séria. Benéfico porque, a despeito de os sesmeiros não cumprirem todas as obrigações assumidas, permitiu a colonização e o povoamento do interior do país, que se consolidou com dimensões continentais”. Com efeito, o regime sesmarial vigorou no Brasil até ser extinto em 1822.

A primeira Constituição Brasileira, a Imperial de 1824, não ousou regulamentar a aquisição de terras, embora tenha contribuído para a modelagem do Direito Agrário Brasileiro, ao garantir a propriedade e a desapropriação mediante prévia indenização, no art. 179, XXII.

No espaço de vinte e oito anos da extinção das sesmarias até a promulgação de outro regime de propriedade, vicejou no país o apossamento indiscriminado e anárquico de terras. Em 1850 foi editada a Lei n. 601, a conhecida Lei de Terras. A nova lei tratou de sepultar o instituto das sesmarias e estabeleceu a compra como única forma de acesso à terra.

Marques saúda os propósitos da aludida lei “porquanto permitiram a conversão, para o mundo jurídico, de situações do mundo fático”, enquanto Mário Lúcio Quintão Soares diz que a Lei de Terras “não logrou corrigir o grave problema de distribuição de terras, e, logicamente, regularizar a situação das terras devolutas”.

A segunda Constituição Brasileira, a Republicana de 1891, normatizou assuntos de Direito Agrário, transferiu aos Estados as terras devolutas, reservando-se à União apenas as áreas destinadas à defesa das fronteiras, fortificações, construções militares, estradas de ferro e os terrenos de marinha. Também destinou aos Estados a competência para instituírem o imposto sobre o imóvel rural.

Em 1912, houve no Rio Grande do Sul, a elaboração do primeiro projeto de um Código Rural. Em 1917 a Constituição Mexicana, e em 1919 a Constituição de Weimar inseriram em seus textos conteúdos sociais, coadunando-se ao paradigma de Estado Democrático Social de Direito, enquanto no Brasil, em 1917, entrava em vigor o Código Civil, marcado por suas concepções individualistas.

A esse propósito escreveu Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira: “A propriedade da terra que, atendendo aos ideais burgueses e urbanos, foi regida às disposições do direito comum sem levar em consideração sua natureza específica, impediu a formação de um direito rural e passou a gerar o desequilíbrio fundiário”. Enquanto o mundo ocidental caminhava rumo a um novo conceito envolvendo o direito de propriedade, o Brasil ainda se apegava às teorias burguesas.

A Carta de 1934, no item 17 do seu art. 113, garantia a inviolabilidade do direito à propriedade ressalvando que tal direito não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo, e prevendo a possibilidade de desapropriação por necessidade ou utilidade pública mediante prévia e justa indenização, nos casos de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, ressalvando o direito à indenização ulterior. Essa Carta foi influenciada pelo pensamento de León Duguit, professor francês, que proclamou ao mundo, em 1911, a doutrina da função social da propriedade. Esse pensador defendia que “a propriedade já não é um direito subjetivo do proprietário. É a função social do possuidor da riqueza”.

Sobre essa Constituição escreveu Marques: “A Constituição Federal de 1934, sedimentando idéias agraristas já desenvolvidas, inclusive com o projeto do Código Rural de Joaquim Luís Osório refundido, preconizou a formulação de ‘normas de Direito Rural’ (art. 5º, XIX, ‘c’)”. Complementa Carvalho: “Mas foi no campo social onde se verificaram as maiores inovações do texto constitucional de 1934: surgiu o Título da ‘Ordem Econômica e Social’, prevendo direitos econômicos e sociais”.

A Constituição de 1937, eminentemente autoritária, caracterizada pela concentração do poder nas mãos do Presidente e pelo desapego à democracia, silenciou-se sobre a função social da propriedade e os avanços do Direito Agrário. Entretanto, a Constituição seguinte, de 1946, segundo Marques, “pode ser considerada a que impregnou avanços mais significativos, tendentes à institucionalização do nascente ramo jurídico. [...] podendo-se destacar a criação da desapropriação por interesse social que, mais tarde, viria a ser adaptada para fins de reforma agrária”. A Carta de 1946, notadamente avançada para a época, significou um avanço brasileiro na seara dos direitos e garantias fundamentais.

Benedito Marques ainda ensina que foi durante a vigência da Carta de 1946 que surgiu o INIC, Instituto Nacional de Imigração e Colonização, através da Lei n. 2.163/54, predecessor do INCRA.

Com o conseqüente avanço das idéias agraristas e o maior espaço dado a elas na Constituição, institucionaliza-se, a 19 de novembro de 1964, o Direito Agrário quando a EC n. 10/64 passa a lhe conferir autonomia legislativa. Surge, em seguida, a 30 de novembro de 1964, a Lei 4.504, o Estatuto da Terra. Diz-se, portanto, ser a EC n. 10/64 a certidão de batismo do Direito Agrário, e o Estatuto da Terra seu Código Agrário. O que permite concluir pelo frescor desse ramo jurídico.

Quanto às Constituições militares seguintes, melhor cumpre transcrever o enunciado por Maniglia: “Nas Cartas de 1967 e 1969 há evolução na linguagem normativa e finalmente, ao falar do pagamento da desapropriação para imóveis rurais, ambas tratam da função social da propriedade”.

Conclusão:

Verifica-se que a institucionalização das áreas agriculturável brasileiras deu-se de forma impetuosa e displicente pela matriz colonizadora do país. As sucessivas Constituições não lograram êxito em corrigir o problema, que só virá a ser juridicamente melhor elaborado com a promulgação da Constituição de 1988.

Bibliografia:

BARROSO, Lucas Abreu; MIRANDA, Alcir Gursen de; SOARES, Mário Lúcio Quintão (Orgs.). O direito agrário na constituição. 2. ed.
CARVALHO, Kildare. Direito constitucional: teoria geral do Estado e da Constituição, direito constitucional positivo. 11. ed. rev. e atual.
COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. 6. ed. reform.
MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrário brasileiro. 6. ed. rev. atual. e amp.
PEREIRA, Rosalinda Rodrigues. A teoria da função social da propriedade rural e seu reflexos na acepção clássica de propriedade. Revista de direito civil, RT, [s.l], nº 65, jul./set.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 24. ed.

domingo, 13 de junho de 2010

Princípios fundamentais de Direito Administrativo

Augusto Burnier


Introdução:

O Direito Administrativo foi concebido sob a era do Estado liberal. Assim, é fortemente marcado pelos ideais iluministas de liberdade, que se contrapõem à necessidade de satisfação dos interesses coletivos. Di Pietro define-o como “o ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública”.

Administração pública:

Segundo Di Pietro, os dois sentidos em que se utiliza mais comumente a expressão Administração Pública são:

a) em sentido subjetivo, formal ou orgânico, ela designa os entes que exercem a atividade administrativa; compreende pessoas jurídicas, órgãos e agente públicos incumbidos de exercer uma das funções em que se triparte a atividade estatal: a função administrativa;


b) em sentido estrito, material ou funcional, ela designa a natureza da atividade exercida pelos referidos entes; nesse sentido, a Administração Pública é a própria função administrativa que incube, predominantemente, ao Poder Executivo.

É como dizer que existe uma função ser exercida que é a administração pública, e quem irá exercê-la é a Administração pública.

Há que se esclarecer a divisão de poderes, ou funções, entre legislativo, executivo e judiciário, bem como não se esquecer do sistema de freios e contrapesos. Paralelamente à essas funções existe a função política, que também pode ser chamada de função de governo, que segundo Renato Alessi apud Di Pietro, “implica uma atividade de ordem superior referida à direção suprema e geral do Estado em seu conjunto e em sua unidade, dirigida a determinar os fins da ação do Estado, a assinalar as diretrizes para as outras funções, buscando a unidade da soberania estatal”.

Administração pública e Governo:

Como não há uma definição exclusiva das funções de cada um dos poderes, a função de governo confunde-se com as atividades residuais que não são enquadradas em qualquer uma das três partições. Como o Brasil é um país de regime presidencialista e com grande concentração de poderes nas mãos do Presidente da República, é justificável a tendência de identificar-se o Governo com o Poder Executivo, com uma forte participação do Legislativo; ao contrário dos Estados Unidos da América, onde o Poder Judiciário desempenha papel de relevo nessa área.

Princípios:

José Cretella Júnior apud Di Pietro ensina que “princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subseqüentes. Princípios, neste sentido, são os alicerces da ciência”. E em seguida, classifica-os:

a) onivalentes ou universais, comuns a todos os ramos do saber;


b) plurivalentes ou regionais, comuns a um grupo de ciências;

c) monovalentes, comuns a um só campo do conhecimento;

d) setoriais, comuns a determinados setores em que se divide uma ciência.

Os princípios da legalidade e da supremacia do interesse público sobre o particular, apesar de não serem específicos do ramo do Direito Administrativo, são essenciais porque deles se constroem os demais.

De acordo com a Carta de 88, os princípios positivados a que se submete a Administração Pública são: legalidade, impessoalidade, moralidade administrativa, publicidade e eficiência.

Mas também informam o Direito Administrativo os princípios da supremacia do interesse público, especialidade, controle, autotutela, hierarquia, continuidade do serviço público, razoabilidade e proporcionalidade, motivação, segurança jurídica, presunção de legitimidade, isonomia ou igualdade, indisponibilidade ou poder-dever, ampla defesa e contraditório, controle judicial e responsabilidade do Estado por ato administrativo etc.

a) Legalidade: O princípio da legalidade trata do paradigma que impulsiona as relações da Administração. Diferente dos particulares que tem a liberdade, a autonomia da vontade, para fazerem tudo aquilo que a lei não proíbe, a Administração Pública fica condicionada a fazer apenas aquilo que a lei permite;


b) Impessoalidade: Em relação ao princípio da impessoalidade, José Afonso da Silva apud Di Pietro diz significar “que os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa da Administração Pública, de sorte que ele é o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal”. Assim, “as realizações governamentais não são do funcionário ou autoridade, mas da entidade pública em nome de quem as produzira. A própria Constituição dá uma conseqüência expressa a essa regra quando proíbe que conste nome, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos em publicidade de atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos”. A idéia básica desse princípio é afastar a pessoa do agente administrativo da figura do órgão da Administração;

c) Moralidade: O princípio da moralidade indica que os atos da administração devem ser morais, trata-se de uma esfera que foge ao direito. Há divergência doutrinária no sentido de que os princípios da legalidade e da moralidade se confundam. Entretanto, uma visão positivista do texto constitucional suporta a teoria de que os princípios da legalidade e da moralidade, conquanto se confundam, são princípios distintos. O princípio da moralidade também propugna pela não existência de uma moral paralela responsável por pessoas “que exercem uma atividade qualquer sem dedicação, sem responsabilidade, sem vocação, sem espírito de servir à comunidade. Sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa”;


d) Publicidade: O princípio da publicidade exige a ampla divulgação dos atos praticados pela Administração pública, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas em lei. A Carta de 88, LX, ressalva que a restrição da publicidade dos atos processuais só poderá existir nos casos em que se fizer necessária para a defesa da intimidade de alguém, ou quando o interesse social o exigir. Interpreta-se em consonância com o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, pelo que, quando confrontado o interesse público com o direito à intimidade prevalecerá o primeiro;

e) Eficiência: Por fim, o princípio da eficiência é, segundo Hely Lopes Meirelles apud Di Pietro, “o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros”. O princípio da eficiência complementa o conceito de meritocracia e é aplicado tanto ao corpo da Administração pública quanto a seus agentes.

Conclusão:

O Direito Administrativo é o corpo de normas e princípios destinado a regular as relações jurídicas entre o Estado e os cidadãos no âmbito administrativo. Os princípios que o informam constroem densa rede estrutural capaz de garantir o correto funcionamento dos entes e serviços públicos. Os cinco princípios fundamentais desse ramo do Direito caracterizam a Administração pública como uma figura desvinculada de qualquer aspecto humano, que opera segundo as programações legislativas. Todavia, percebe-se que a lei não pode desviar a Administração pública dos ideais éticos e morais, o que se concretiza, principalmente, com a efetivação dos princípios da publicidade e da eficiência, notas distintivas de uma Administração pública de um Estado Democrático.

Bibliografia:

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15ª ed.